Existência de usuários de primeira e segunda classes marca a desigualdade digital no Brasil

Pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) mostra que o lugar onde usuário mora define sua inserção no mundo digital.

Janaína Simões

Apesar de ter aumentado a oferta de serviços de banda larga no Brasil e do uso da internet pelos cidadãos, as regiões mais pobres e o meio rural ainda enfrentam a incapacidade de pagamento ou a carência de oferta como principais empecilhos para o acesso à rede mundial de computadores. Além disso, a população que não utiliza a internet alega como razões principais a falta de interesse ou de conhecimento para navegar pela rede, ou seja, não são empecilhos econômicos como o custo dos equipamentos ou dos serviços de conexão que os mantêm afastados do mundo virtual.
 
Este é o retrato que surge da pesquisa “A Geografia Digital no Brasil: Um Panorama das Desigualdades Regionais”, feita diretora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-Cepid/Fapesp) e professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Marta Arretche. A pesquisa foi publicada no livro “Desigualdades Digitais no Espaço Urbano: Um Estudo Sobre o Acesso e o Uso da Internet na Cidade de São Paulo”, que acaba de ser publicado pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br). 

Ao analisar os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD Contínua, edições de 2012, 2013, 2016 e 2017, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase 70% dos indivíduos com 10 anos ou mais declararam ter utilizado a internet nos últimos três meses – 74,8% referente à população urbana e 39% à rural.

 
Quando se observam as regiões brasileiras, percebe-se dois cenários. Há aquelas em que as taxas são equiparáveis às obtidas pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) para a Alemanha. É o caso do Sudeste e do Sul, onde 76,5% e 73,2% da população nessa faixa etária, respectivamente, declararam ter utilizado a internet nos últimos três meses. Por outro lado, as regiões Norte e Nordeste, com 60,1% e 58,4%, respectivamente, apresentam taxas semelhantes às da Índia, apontadas pelo mesmo estudo da UNCTAD.

O estudo conduzido por Arretche mostra ainda a diferença entre o urbano e o rural. No Norte, por exemplo, as taxas de conexão no meio urbano eram duas vezes e meia maiores do que as encontradas no campo na região (69,6% contra 27%). No Nordeste, o percentual para o urbano é de 66,6% e para o rural é de 33,6%. Isso ocorre mesmo no Sudeste, a região mais rica do País: no meio urbano, a taxa foi de 78,4%; no meio rural, de 49,4%. 

As regiões mais pobres e o meio rural enfrentam a incapacidade de pagamento ou a carência de oferta como principais empecilhos. Para 18,2% da população brasileira (22,1% da população do Nordeste, 19% do Norte,16,5% do Sudeste, 12,6% do Sul e 13,3% do Centro-Oeste) os fatores econômicos (serviço e equipamentos caros) impedem o acesso. Nas regiões mais pobres também estão registrados os maiores percentuais de pessoas que alegaram a ausência de serviços de conexão como motivo para o não uso da internet: 14,6% na Região Norte; 4,8% no Nordeste; contra 2,3% no Sudeste e 3,1% no Sul. O Centro-Oeste registrou 6,3% nesse quesito. 

Os indicadores sobre o valor cobrado pela conexão e de equipamentos para acesso se apresentam mais alto justamente nessas áreas. Na Região Nordeste: 15,5% disseram que o acesso à internet era caro. No Norte, 10,8%. O preço dos equipamentos eletrônicos foi colocado como barreira de acesso para 8,2% na Região Norte e para 6,6% no Nordeste. 

Arretche utilizou também dados da Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros – TIC Domicílios 2012, 2013, 2016 e 2017. Com eles é possível detectar as disparidades internas às regiões brasileiras e as desigualdades de uso. Alguns estados registram um percentual de usuários acima da média nacional, caso do Mato Grosso do Sul, Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal. Os que estão abaixo são o Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pará, Ceará, Pernambuco, Amazonas e Bahia. A diferença entre esses dois perfis é grande: a Bahia e o Distrito Federal, por exemplo, estão separados por 32 pontos percentuais (50% contra 81,7%, respectivamente, para o período 2016-2017.) 

Usuários de primeira e segunda classe
A pesquisa de Arretche avança ao incluir, na avaliação das desigualdades digitais, o modo como se conectam e o uso que as pessoas fazem da internet. O uso das classificações primeira e segunda classe integra essa nova proposta para a observação e estudo da inserção digital da sociedade. Esta metodologia vem sendo aplicada por cientistas que estudam a desigualdade digital em países como o Reino Unido e Estados Unidos. 

Os usuários de primeira classe são aqueles que utilizam a banda larga como conexão e fazem uso doméstico de computadores, e os de segunda fazem uso da internet com base em ferramentas mais limitadas, como telefones celulares, acesso discado, acesso em lugares públicos etc. O modo de se conectar está associado às possibilidades de uso, ou seja, o engajamento. Para medi-lo, são elencadas 16 atividades, como enviar e receber e-mail, realizar algum serviço público como emitir documentos, ler notícias, fazer cursos à distância, participar de redes sociais, fazer consultar e pagamentos financeiros, entre outras. O engajamento está associado ao uso da banda larga, pois esta oferece melhores condições para a exploração das oportunidades de emprego, atividades econômicas e engajamento cívico

Usuários de intenso engajamento são a faixa da população que realizou oito das 16 atividades de engajamento usadas pelos pesquisadores para medir o processo. O percentual de brasileiros classificados como tal foi de 18,2%, no biênio 2012-2013, e 27,9%, no biênio 2016-2017, segundo o levantamento TIC Domicílios. Usuários de primeira classe são minoria e distribuídos de modo destoante no território, em padrões de desigualdade territorial que se mostram persistentes. 

Os estados que apresentam taxas superiores de utilização são os mesmos que apresentam as taxas mais elevadas de engajamento, como, por exemplo, o Distrito Federal (41,6% de engajamento). A média nacional está um pouco abaixo dos 40%. Além do DF, os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul aparecem com destaque, possuindo índices próximos ou ligeiramente superiores a 40% de engajamento. 

“A distância entre usuários de primeira e segunda classe varia, no biênio 2016-2017, entre 33,7 e 43,3 pontos percentuais, isto é, embora a taxa dos internautas de primeira classe varie bastante entre os estados, a taxa de internautas de segunda classe é, via de regra, cerca de 34 a 43 pontos percentuais maior do que a dos primeiros”. Ou seja, a distância que separa usuários de primeira e segunda classe é razoavelmente homogênea no território.

Geografia da elite digital
Os dados da PNAD Contínua e da TIC Domicílios sugerem que as desigualdades do mundo on-line estão associadas às do mundo off-line: há uma estratificação física em relação ao urbano e rural, dada as dificuldades técnicas de atingir domicílios em áreas com baixa densidade populacional, e uma desigualdade socioeconômica, associada à concentração espacial dos indivíduos cuja renda não permite pagar os custos de aquisição de equipamentos e de acesso ao serviço de internet. 

A distribuição territorial da oferta de banda larga é desigual no Brasil. A elite digital, integrada por aqueles que possuem banda larga superior a 4Mbps, é muito maior no Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo. “A elite digital do Distrito Federal, no biênio 2016-2017, é mais do que seis vezes maior do que a elite da Bahia e quase oito vezes maior do que a do Pará”, exemplifica. 

Há uma clara associação positiva entre a renda média do estado e o tamanho de sua elite digital. Os dados sugerem que não é a desigualdade, mas o nível de renda que explica o tamanho da elite digital de cada estado. A oferta de serviços de banda larga de maior velocidade parece estar associada à riqueza dos estados e não aos padrões de concentração de renda. 

“Logo, não é verdade que as novas tecnologias digitais eliminaram as barreiras geográficas, visto que, para se integrar ao mundo digital, disponibilidade de acesso é condição necessária e depende do lugar onde se mora”, conclui a pesquisadora.

Quem está fora do on-line
Já entre as pessoas que declararam não ter usado a internet, as principais razões não são de fator econômico (serviço de acesso e equipamentos caros) nem a falta de disponibilidade de serviço de acesso, indicam os dados da PNAD Contínua. 

O não acesso foi explicado por 39,7% da população urbana e 29,3% da rural pela simples falta de interesse pela internet. Outros 38,5% (urbana) e 38,6% (rural) não acessaram a internet por não haver nenhum morador que soubesse usá-la. Apenas 1,7% (urbano) e 12,9% (rural) das pessoas do grupo de não usuário afirmaram que não acessaram a rede por não ter o serviço disponível em sua área de domicílio. 

Ou seja, as duas principais razões apontadas pelas pessoas que não usaram a internet são de ordem individual (falta de interesse) ou por não deterem ou ter alguém na residência que tivesse competência ou conhecimento técnico para participar do mundo on-line. 

Essa é uma situação que se apresenta em todas as regiões brasileiras. Mesmo nas regiões mais ricas, entre os que não utilizaram a rede, uma elevada proporção de usuários alegou falta de interesse – nas regiões Sudeste foram 43%, no Sul, 41,9%, e no Centro-Oeste, 37,9%. A inexistência de morador que tivesse habilidade para navegar pela rede foi apontada por 36,8% das pessoas do Sudeste, 40,7% do Sul e 40,2% do Centro-Oeste como justificativa para o não uso da internet. 


Sobre o CEM:
Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Universidade de São Paulo (USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.


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