Livro do CEM busca preencher vazio conceitual para explicar a política do urbano
Enquanto a Ciência Política estuda o urbano aplicando a ele uma espécie de ‘miniaturização’ de modelos teóricos criados para estudar o nível nacional, os estudos da Sociologia e do Urbanismo brasileiros consideram dimensões societais das cidades, como os processos e seus atores. Entre essas duas tradições, as instituições políticas das cidades, suas políticas e atores caíram em um “vazio conceitual” que o livro “As políticas do urbano em São Paulo”, editado pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e a Editora Unesp, busca preencher. “Nossa ideia é ir além da pergunta clássica ‘quem governa a cidade’, colocada pela Ciência Política no final dos anos 1950, para tentar entender quem governa o quê, e quem governa o que o governo não governa”, explicou o vice-coordenador do CEM, professor Eduardo Marques, organizador do livro, que foi lançado nesta quarta-feira (19/12) na Livraria da Vila, em São Paulo.
Falar do urbano é falar da cidade, mas um livro sobre a metrópole paulistana acaba motivando os debates a extrapolar essa escala e abordar o tema em escala nacional, o que acabou ocorrendo na discussão sobre o livro. Quem governa a cidade foi o questionamento inicial da moderadora do evento, a fundadora do jornal Nexo, Paula Miraglia. “Trata-se de um processo anárquico, complexo, sobreposto, onde observamos muitas soberanias, algumas estabelecidas e outras em intensa disputa”, respondeu Marques. As cidades foram sendo produzidas por processos de superposição de lutas setoriais com múltiplos atores operando. “Discordo de nomes como cidade democrática, cidade participativa, cidade neoliberal. Dada a complexidade e a fragilidade relativa do poder público para dar conta disso, não há possibilidade de ter uma única lógica hegemônica, mas várias lógicas divididas e coexistentes”, acrescentou.
É possível observar fortes assimetrias, que o desenho das instituições pode ajudar a reduzir. Um caso que ele citou foi o da Operação Água Branca, em São Paulo, cujo desenho de participação foi muito mais aberto e tem permitido que um conjunto mais amplo de atores possa exercer, de fato, poderes de veto. “A produção dessas institucionalidades é parte recente e importante para reduzir essa assimetria, e a presença dos atores privados é relevante e crescente – no livro, ficamos impressionados em como os paralelos vão ficando muito forte. Essa crescente presença e importância dos capitais do urbano, operando em várias políticas, na maioria das vezes, objetivando acesso ao fundo público, também vai aumentando a desigualdade de poder na definição dos rumos da cidade”, completou.
Um avanço importante nas políticas do urbano foi obtido recentemente no Brasil, com a criação do Ministério das Cidades. “Ele começa a organizar o sistema nacional de políticas do urbano, algo muito mais complexo do que saúde ou educação, por exemplo. Essas são áreas setoriais, e quando falamos do urbano estamos falando de muitas políticas setoriais reunidas espacialmente, mas normalmente separadas institucionalmente”, afirmou. Apesar dos problemas que o Ministério teve, inclusive na sua própria institucionalização, o órgão promoveu uma melhoria das institucionalidades locais, em grande parte por incentivos criados pelas políticas que produziu. “Grande partes dessas políticas induziu os municípios a criarem capacidades, planos locais, burocracias, leis, conselhos, fundos para poder receber os recursos. Isso empurrou os municípios para aumentar as capacidades de gestão do urbano nos 20 últimos anos”, justificou. Isso após um longo período de enfraquecimento das políticas urbanas nos anos 1980 e 1990. “O período entre o declínio da políticas do regime militar e o início dos 2000 criou um passivo de capacidade de gestão das cidades brasileiras, que já era grande, e aumentou ainda mais ao longo do tempo”, apontou.
Apesar disso, o Ministério e suas políticas pouco conseguiram influenciar os municípios no planejamento e controle do uso do solo, por exemplo. Os municípios e suas lideranças políticas locais não enfrentam o problema ou têm enorme dificuldade para, por exemplo, aprovar e aplicar Planos Diretores que tenham dimensões redistributivas. “Como resultado disso, as estruturas urbanas das cidades permanecem muito semelhantes. A desigualdade de renda caiu, em geral, apesar de isso não ter acontecido entre os mais ricos. A desigualdade de acesso a serviços caiu acentuadamente, mas a desigualdade de acesso à estrutura da cidade tem se reduzido muito pouco”, apontou.
O futuro
Para Marques, a situação atual é tão incerta que não permite previsões muito precisas. “Não está claro se estamos vivendo um início de um novo período de autoridade política durável. Podemos estar atravessando um período de desordem, em que não se estabelece um padrão claro de autoridade política que tenha lógica, faça sentido, e que consiga construir e controlar as narrativas sobre si próprio e sobre essa agenda”, disse. “Ocorrendo isso ou não, o último período acabou. A dimensão da participação, que foi tão central na agenda anterior, não terá essa mesma centralidade. Pode ser revertida ou enfraquecida, mas não vamos vivê-la na mesma dimensão”, previu.
Outro grande ponto de interrogação é o Ministério das Cidades. “Se for desmontado ou capturado por outra estrutura de lógica de clientela mais tradicional, teremos mais um retrocesso. Há cidades com mais capacidades, como São Paulo, mas os problemas são de igual proporção”, respondeu ele sobre como via o futuro mais imediato no campo da política do urbano. “A cidadetem capacidade para produzir e gerir em determinados setores, como ocorreu no transporte público sobre pneus, cujas políticas tem se sofisticado gradativamente, mas cujo ciclo de aumento das capacidades de regulação não chegou a se completar. Em outras áreas temos fragilidade muito grande, como na gestão de políticas associadas ao uso do solo, onde os interesse privados operam muito fortemente”, exemplificou.
Mobilidade é destaque
A questão da mobilidade, aliás, é de tão grande importância e tão desarticulada em São Paulo, onde é tocada por três agências diferentes que não dialogam entre si, que acabou se desdobrando em três capítulos no livro. Neles, é possível notar que há um legado muito pobre em investimentos em mobilidade. No caso do metrô, analisado em um dos capítulos, é demonstrado que há um sub-investimento, relacionado ao modelo de financiamento. O dinheiro federal desapareceu quando os elevados níveis dos anos 1970 foram sendo substituído gradativamente pelo governo estadual. Mas logo essa fonte se esgotou e passou-se ao modelo de parcerias público-privada (PPPs) para obtenção de recursos. “No balanço, vemos que a produção foi ínfima em relação à demanda da cidade. Somos do mesmo tamanho e temos pouco menos da metade da malha metroviária existente na Cidade do México, e esta já não é uma maravilha”, lembrou.
No caso dos transportes sobre pneus, o destaque fica para um conflito redistributivo, ou seja, sobre quem usa e de que forma se reparte a via. Isso se expressa na disputa entre automóveis e ônibus, algo que vem desde anos 1940. Nos anos 1970 se estabeleceu o paradigma de organização do espaço viário para liberar o fluxo para os carros. “O transporte público fica numa situação ‘imprensada’, é o ‘atrapalhador’. Então, privilegiar essa política é produzir uma política redistributiva, por isso corredores de ônibus são tão conflitivos: você está dizendo para as pessoas que usam transporte privado individual que elas não podem entrar nos corredores e faixas exclusivas.
Ainda no campo da mobilidade, um dos estudos pioneiros publicado no livro mostra que, ao longo das últimas duas décadas, gestões petistas ou influenciadas pelo partido utilizam inovações e transformações vindas de outras gestões, inclusive de partidos de direita, que tinham objetivos diversos, mas acabaram abrindo espaço para a construção do Sistema Interligado.
Outro tema que apareceu nas perguntas foi o do orçamento. O livro dedica um capítulo específico para discussão sobre sua governança. A pesquisadora do CEM, professora Úrsula Dias Peres, autora do capítulo, explicou que a ‘leitura’ do orçamento, atualmente, não é mais tão simplista – antes se entendia que, uma vez estudado o orçamento, era possível saber o que governo está fazendo. “Com a Constituição de 1988 e os diversos ajustes que se seguiram, uma parte importante do orçamento passou a ficar cada vez mais pré-determinada, ainda que com contornos internos, o que significa que boa parte do orçamento está dada”, explicou ela. Às vezes, menos de 10% do total do orçamento fica realmente livre para as prefeituras. “E esses 10% sofrem enorme influência dos capitais urbanos na definição de seu direcionamento”, concluiu.
O livro “As políticas do urbano em São Paulo está disponível para compra na loja virtual da Editora Unesp.
Sobre o CEM:
Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Universidade de São Paulo (USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.
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