Como a redemocratização do Estado brasileiro abre espaço para movimentos pró-migrantes

Pesquisadora do CEM analisa as articulações entre Estado e entidades civis que lutam pelos direitos dos migrantes internacionais no período de 1970 a 1990.

Janaína Simões

Entender o nascimento dos movimentos pró-migrantes e como o espaço para atuação dos mesmos se abriu no período 1970-1990 é o tema do artigo “Coalizações de defesa dos migrantes internacionais e política partidária, durante a transição democrática, em São Paulo”, de Patrícia Tavares de Freitas, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). O texto foi publicado na Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM) - veja aqui na íntegra

Patrícia estudou o tema da migração internacional sob a perspectiva analítica dos domínios de agência. Por esse método, a pesquisadora focalizou a história de interações entre agentes do estado, políticos e representantes das organizações da sociedade civil. Essas interações, que podem ser de conflito, aprendizagem e cooperação, influenciam mutuamente a forma como as entidades e o próprio estado vai se estruturar, montar uma agenda de política pública ou de movimentos de lutas etc. 

“Explicar a trajetória das políticas públicas no Brasil pós-transição constitui um foco de atenção prioritária tratado sob diversos ângulos pelas Ciências Sociais”, afirma Adrián Gurza Lavalle, professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DCP/FFLCH-USP), pesquisador do CEM e supervisor de Patrícia no pós-doutorado. “A originalidade da abordagem do domínio de agência, que orienta o trabalho de Patrícia, consiste em iluminar essa trajetória como resultado de processos sócio-estatais de institucionalização, em que os instrumentos de ação e capacidades do Estado e os repertórios de atuação dos atores sociais são construídos nesses processos. Patrícia, nos oferece um diagnóstico riquíssimo da institucionalização da política de migração na pós-transição”, acrescenta ele.

No período 1970-1990, Patrícia identifica três ciclos na interação sócio-estatal em que a coalização a favor dos migrantes adquiriu protagonismo na luta pelos direitos dessa população. Os primeiros dois ciclos, entre os anos 1970 e 1990, se referem ao apoio aos refugiados latino-americanos e à luta pela incorporação do Estatuto do Refugiado no ordenamento jurídico brasileiro. Um terceiro ciclo se deu quando essa coalização lutou a favor do direito à educação para os filhos dos migrantes sem documentos, em 1990. 

Além de trabalhar com esses ciclos, a pesquisadora analisou os encaixes institucionais estabelecidos por essa coalização nas estruturas do poder executivo estadual. Encaixes são estruturas institucionais, como leis, regras, prioridades, estruturas executivas, cargos, direitos de participar em conselhos etc, que garantem a determinados atores sociais algum tipo de acesso e/ou controle da atuação do estado. 

O período 1970-1990 molda os caminhos institucionais por meio dos quais a questão da população de migrantes passa a ser tratada pelo governo Estadual de São Paulo. “Nessa fase ainda temos processos muito incipientes da luta pelos direitos dos migrantes, mas é quando estabelecemos as primeiras aberturas institucionais no Estado democrático que estava se formando, com estruturas que vão continuar, até recentemente, a fazer parte dessa história, como por exemplo, a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania”, aponta. 

Ilustração: capa da cartilha Nacionalidade e Apatridia: Manual para Parlamentares, da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR).

Encontros e articulações entre os atores
Uma conjugação de forças se deu ao longo dos anos 1960 e meados de 1980 em torno da luta contra a ditadura militar no país, envolvendo movimentos da igreja católica, sindicalistas e movimentos de esquerda em defesa dos direitos humanos. 
Nesse contexto, são formadas as estruturas de atuação da missão católica scalabriniana que serão centrais para a defesa dos imigrantes e refugiados durante todo o período democrático posterior, na cidade de São Paulo. Até os anos 1960, os scalabrinianos voltavam-se exclusivamente para o apoio à comunidade italiana no país. No entanto, em meio aos acontecimentos da ditadura, passaram a apoiar também os migrantes internos e internacionais. Essas mudanças foram efetivadas no estabelecimento de três estruturas institucionais: o Centro de Estudos Migratórios (CEM), de 1969, a Associação de Voluntários pela Integração dos Migrantes (AVIM), de 1974 que, posteriormente, se transformou na Casa do Migrante e o Centro Pastoral dos Migrantes, de 1977. Atualmente, todas essas instituições compõem o que passou a se denominar Missão Paz. 

“Na época da ditadura, observamos então uma junção de forças: por um lado, esse movimento da Igreja católica de abertura para a questão social e da missão católica scalabriniana, especificamente, de se abrir para atuar junto a outros públicos migrantes, e por outro, o da militância política contra o poder militar e pelos direitos humanos. Elas se encontram na Comissão de Justiça e Paz [criada em 1972 pela Igreja Católica, mas tornada organização civil posteriormente]”, conta Patrícia.
Esse encontro ocorre graças a uma parceria celebrada entre a CJP e a ACNUR para o apoio aos refugiados latino-americanos até que pudessem ser transferidos para locais mais seguros. A cidade de São Paulo se transformou em uma base de pouso desses refugiados e a missão scalabriniana juntamente com a Cáritas Arquidiocesana foram centrais para a gestão desse apoio em plena ditadura militar. 

Em 1980, foi publicado o Estatuto do Estrangeiro, o que endureceu a fiscalização por parte da Polícia Federal. Os migrantes estrangeiros irregulares eram tratados como caso de segurança nacional. Ao mesmo tempo, nesse período, mudava o perfil das migrações: dos perseguidos políticos, o Brasil passou a receber os migrantes econômicos latino-americanos, principalmente os bolivianos – que só vieram a ganhar mais destaque nos anos 2000, com as denúncias de trabalho escravo em confecções em São Paulo que eram fornecedores de roupas para grandes marcas da indústria da moda. 

“Com a Constituição de 1988, a participação que, durante a ditadura, era uma reivindicação disruptiva dos movimentos sociais vira gramática do Estado, é o Estado que fala, é sua retórica. Ele começa a criar espaços participativos, e algumas organizações da sociedade civil, como as direcionadas para a defesa dos migrantes, vão aproveitá-los e conseguir estabelecer certo domínio por meio de conquistas institucionais a partir dessa participação, daí a ideia dos domínios de agência”, afirma. 

A luta no campo da educação
Porém, apesar da Carta Magna expressar um compromisso com os direitos humanos, as normas do Estatuto do Estrangeiro prevaleciam, criando novos embates e articulações entre o poder público e a sociedade civil nos anos 1990. Um deles se deu no direito ao acesso de crianças e adolescentes migrantes ao sistema educacional de ensino no Estado de São Paulo. 

Com base nas normas do Estatuto, e poucos meses depois da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma resolução estadual da Secretaria de Educação de São Paulo passou a impedir a matrícula de filhos de migrantes sem documentos regularizados nas escolas paulistas. A coalização pró-migrantes, que já atuava nos anos 1970, foi ativada nesse momento. Ela procurou dialogar com a Secretaria e outras instituições, como as próprias escolas, delegacias e coordenadorias de ensino, Polícia Federal etc, para reverter a decisão. Sem avanços, integrantes da coalização contataram o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, e a Comissão de Justiça e Paz. Em 1993, destacaram o advogado Belisário dos Santos para tratar pessoalmente do caso. 

A decisão naquele momento foi não revogar a norma estadual enquanto a lei federal não fosse modificada. Mas, em 1995, quando Mario Covas, do PSDB, assume o governo de São Paulo, nomeia Belisário dos Santos para a Secretaria da Justiça. Este revoga a portaria anterior e garante o direito à educação de todas as crianças residentes no Estado, independentemente da sua situação jurídica, o que representou uma abertura institucional por parte do Estado. 

Durante os anos 1990, foram estabelecidas uma série de estruturas institucionais voltadas para a proteção e promoção dos direitos humanos. Em nível nacional, foi estabelecida, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a primeira Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (1997). Pouco antes disso, o Brasil tinha lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que conformou a base programática da Secretaria. 

No Estado de São Paulo, a própria Secretaria de Justiça passou por importantes mudanças internas, inspiradas no primeiro Programa Estadual de Direitos Humanos (PEDH) de 1997, passando a se chamar Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania. 

Nesse primeiro PEDH, os migrantes internacionais ganharam um capítulo, junto com outros grupos que passaram a ser reconhecidos em suas especificidades – como crianças e adolescentes, mulheres, população negra, povos indígenas, terceira idade portadores de deficiências, homossexuais e transexuais – passando a compor o rol das minorias. 

O artigo publicado por Patrícia na Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana se refere a uma parte da sua pesquisa de pós-doutorado. Ela estudou períodos posteriores, chegando até a gestão do Partido dos Trabalhadores na década de 2000. Na pesquisa, a cientista observou que a legislação nacional, mesmo não sofrendo grandes alterações no período considerado, incorporou, ao longo do tempo, acordos de direitos humanos internacionais que se estenderam aos migrantes. Ela também delineou quais organizações e agentes políticos foram se tornando importantes e sensíveis à questão da imigração. “Trata-se de um processo amplo de construção institucional muito favorável aos migrantes, mas o Brasil ainda precisa ter políticas mais explícitas e menos pontuais para abordar essa questão dos migrantes”, conclui. A pesquisa completa ainda será publicada em livro, a ser lançado brevemente pelo CEM, organizado por Adrián Lavalle. 


Sobre o CEM:
Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Universidade de São Paulo (USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.


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