A falta de coordenação entre governos federal e estaduais, refletida na educação e saúde

Apesar dos ganhos de receita, houve estados que não aumentaram suas despesas com saúde e com educação, indica pesquisa de Ursula Peres, do CEM, e Fábio Pereira dos Santos, da Câmara Municipal de São Paulo.

Janaína Simões

Pesquisa da Rede Solidária indica que não basta haver transferência de recursos da União para estados (e DF) se não houver uma coordenação de quanto transferir e sobre a utilização desses recursos. Os dados indicam que alguns estados receberam mais recursos sem terem tido perdas de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Apesar dos ganhos de receita, houve estados que não aumentaram suas despesas com saúde e com educação. O auxílio financeiro aos estados foi superior à perda de receita própria desses entes da federação, e mesmo os estados que não tiveram perdas de receita receberam essas transferências. 

A pesquisa mostrou que as despesas dos estados cresceram expressivamente na área de saúde, como era de se esperar, mas a ausência de estratégia para combater os efeitos da pandemia levou à uma queda média de 9% nas despesas com educação. O surpreendente é que essa queda ocorreu na maioria dos estados, mesmo naqueles que tiveram ganhos na arrecadação do ICMS. Alguns estados reduziram o dispêndio em educação em mais de 20%.

Estes são exemplos do que ocorreu em 2020 do ponto de vista da arrecadação de impostos, recursos de transferência da União e gastos dos estados em educação e saúde, detalhados em estudo de Ursula Peres, pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-Cepid/Fapesp) e professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), e Fábio Pereira dos Santos, técnico da Câmara Municipal de São Paulo. Os resultados da pesquisa estão descritos na Nota Técnica 27, produzida pela Rede de Pesquisa Solidária, da qual o CEM, sediado na FFLCH-USP e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), é uma das entidades.

Em 2020, cerca de R$ 600 bilhões em gastos federais foram autorizados para enfrentamento à pandemia. Não houve, porém, qualquer coordenação nacional efetiva, destacam os autores da Nota Técnica, em que são comparados o comportamento fiscal dos estados de 2020 com o exercício de 2019, fazendo uma análise mais detalhada sobre duas áreas: a saúde e a educação.

O cenário geral de receitas e despesas dos estados e do DF na pandemia

Segundo os pesquisadores, a receita do ICMS, a principal fonte para esse ente federativo, teve queda real de 2,1% na média em 2020. Em 12 estados, apesar da crise provocada pela pandemia, houve aumento na arrecadação desse imposto. 

Em 2020, a União repassou expressivo auxílio financeiro aos estados, por meio de um conjunto de mecanismos como a Lei Complementar 173/2020, que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus e previu R$ 60,15 bilhões em ajuda a estados e municípios; a compensação das perdas do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), no valor de R$ 16 bilhões; e o Apoio Emergencial ao Setor Cultural. Para completar o pacote de auxílio, houve a suspensão do pagamento de dívidas dos estados e municípios com a União e os bancos públicos e multilaterais. 

Esse conjunto de medidas permitiu um repasse federal superior à perda de receita própria dos estados. Até unidades da federação que não tiveram perdas receberam recursos. O socorro fiscal não vinculou os repasses à perda de ICMS ou Imposto sobre Serviços (ISS), no caso das prefeituras, o que produziu um descompasso entre perdas de arrecadação e transferências recebidas. 

De acordo com os dados levantados pelos pesquisadores junto ao Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi), o volume total da receita corrente líquida (RCL) dos estados teve crescimento real de 2,4% em 2020 quando comparado a 2019. De forma global, as transferências da União aumentaram 97,5% entre um ano e outro, enquanto o ICMS teve uma queda de 2,1%. Apenas cinco estados tiveram perdas de receita, descontada a inflação: São Paulo (perda de 1,5%), Rio de Janeiro (2,8%), Paraná, (1,1%), Espírito Santo (5,5%) e Roraima (1,3%). Os demais registraram ampliação: Mato Grosso, por exemplo, registrou aumento de RCL de 14,2% entre 2019 e 2020. 

“Apesar do crescimento das receitas, houve redução real de 3,5% no total gasto pelos estados e pelo Distrito Federal em 2020 em relação a 2019. A variação entre os estados foi muito ampla em torno desse número”, apontam na Nota Técnica. Enquanto a maioria teve pequenos aumentos ou redução nas despesas, os estados de São Paulo, Piauí, Paraná e Mato Grosso reduziram suas despesas em mais de 5%; já estados como Alagoas e Rondônia tiveram aumento superior a 5%. “Os desempenhos extremos foram o Paraná, com queda de mais de 16%, e o Pará, com aumento de quase 11%.” 

Quando se esmiúça as finalidades do gasto, percebe-se, de forma geral, aumento importante em saúde, transportes, urbanismo, assistência social e cultura. “Ao mesmo tempo, caíram de forma destacada os gastos com educação, ciência e tecnologia, direitos da cidadania e encargos especiais, além de outras funções de menor peso na despesa total”, ponderam. 

Como foram as despesas em saúde e educação

Os pesquisadores analisaram com mais detalhes duas funções: saúde e educação. A média de gastos empenhados com a função saúde em 2020 foi 11,1% maior do que o executado em 2019. Mas, ao analisar esse aumento de despesas, comparando-o ao valor recebido pelos estados em transferência da União em função da Covid-19, os pesquisadores concluíram que “não é possível identificar nenhuma relação clara e coordenada entre o recebimento das transferências e o gasto incremental em saúde”, como mostra o Gráfico 2 da Nota Técnica.

Alguns estados chamam a atenção por terem recebido valores expressivos de transferência federal, mas não aumentarem seus gastos na mesma proporção. Os dados mostram que, enquanto há estados em que o aumento do gasto em saúde representou cerca de 50% das transferências recebidas, em alguns esse percentual foi ínfimo e dois estados reduziram o gasto em saúde. Minas Gerais, inclusive, reduziu o gasto em saúde em 2020 em cerca de R$ 1 bilhão, mesmo tendo recebido transferências que chegam próximas dos R$ 4 bilhões. 

Já em educação, houve uma redução real média de 9% nos gastos dos estados em 2020 ante 2019. Os pesquisadores associam a queda a dois fatores: o fechamento das escolas, o que levou a economia com alguns serviços, e a redução de receitas de impostos que, ao serem compensadas por transferências da União, perdem a vinculação que obriga a aplicação de 25% em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino.

Outro dado relevante está no fato de que a queda de arrecadação do ICMS foi menor do que o esperado, mas a redução das despesas em educação ultrapassou a diminuição de receitas. Em Goiás, Alagoas, Rio de Janeiro e Piauí, a redução dos gastos em educação foi maior do que 20%. Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Roraima, tiveram ganhos reais expressivos em ICMS, e mesmo assim reduziram os aportes no setor. 

Uma possível explicação para isso seria o fato de que, quando percebeu-se que o ICMS não teria a redução esperada, no segundo semestre de 2020, já não havia tempo para gastar os recursos. Além disso, os estados podem ter adotado posturas conservadoras nos gastos em razão da demora do governo federal em transferir recursos, o que só ocorreu a partir de junho do ano passado. As incertezas em relação à continuidade do auxílio emergencial e às receitas de 2021 também podem ter contribuído para esse comportamento. 

Como recomendações para os gestores públicos, os pesquisadores indicam o estabelecimento de uma coordenação federativa na transferência dos recursos da União para estados e municípios, com orientações claras para o dispêndio na saúde e associados à efetiva perda de receitas; a retomada urgente do auxílio emergencial; e a transparência na apresentação dos dados públicos para sabermos em detalhes como os recursos foram empregados. 

Clique aqui e confira no Jornal da USP no Ar a entrevista concedida por Ursula Peres e Fábio Pereira dos Santos sobre a pesquisa. 


Sobre o CEM:
Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.


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