Livro analisa políticas públicas de redução da desigualdade em São Paulo
Por que políticas inovadoras que reduzem desigualdades urbanas são produzidas por certos governos municipais, e em que condições entram na agenda de forma definitiva? Bilhetes eletrônicos que unifiquem serviços de ônibus, trem e metrô, controle sobre os caminhões e serviços de coleta de lixo, regularização de terrenos e urbanização de favelas são exemplos de políticas públicas urbanas que vieram para ficar. Já iniciativas como a cobrança da taxa de lixo e a realização de projetos habitacionais para a população mais carente em áreas melhor localizadas foram descontinuadas. Há ainda políticas oscilantes, que foram implementadas em certa gestão, mas que na seguinte foram suspensas ou pouco executadas. Nesse caso, entretanto, ao invés de desaparecerem, podem ficar dormentes – efeito definido como latência - e voltar ao centro das atenções em eleições posteriores, como o estabelecimento de controle sobre linhas de ônibus e a criação dos corredores e faixas exclusivas.
A continuidade ou não de tais políticas, assim como as suas trajetórias respectivas, envolvem três mecanismos associados entre si. Em primeiro lugar, a competição entre partidos políticos nas eleições locais, com intensa alternância no poder. Além disso, a presença alternância de governos de esquerda, tendentes às inovações redistributivas. Em terceiro lugar, elementos associados à própria produção das políticas como capacidades estatais, instrumentos de políticas e a presença de atores societais.
É o que apresenta o livro “The Politics of Incremental Progressivism: Governments, Governances and Urban Policy Changes in São Paulo”, organizado por Eduardo Marques, diretor do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-Cepid/Fapesp) e professor do Departamento de Ciência Política (DCP) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). O livro acaba de ser lançado pela Wiley Editora na prestigiosa série de livros Series in Urban and Social Change (SUSC) ligada ao International Journal of Urban and Regional Research (IJURR), um dos maiores periódicos internacionais no que se refere a pesquisas sobre o urbano.
As políticas discutidas nos capítulos do livro são diretamente associadas à produção do tecido urbano, permitindo explorar as relações entre politics e policies e o espaço urbano. Além disso, em geram sofrem baixa regulação do governo federal, diferentemente de saúde e educação, por exemplo. As análises mostram a existência de um progressivismo incremental na produção de políticas de redução de desigualdades no espaço na cidade de São Paulo. “Tal trajetória, embora de forma conflitiva e incompleta, expande de forma incremental a variedade e o escopo de tais políticas desde a redemocratização brasileira”, aponta Marques.
A partir da análise comparada da trajetória de 30 dos mais relevantes programas do período, a publicação desenvolve uma nova discussão teórica e metodológica para o estudo das cidades que busca unir os conhecimentos, conceitos e metodologias aplicados pelos estudos urbanos e pela Ciência Política.
A metrópole de São Paulo serve como estudo de caso para a construção desse novo arcabouço. “Esse é o primeiro livro que faz esse tipo de balanço amplo de políticas urbanas para uma cidade do Sul global”, diz. As pesquisas contidas no livro integram um projeto científico internacional conduzido no Brasil por Eduardo Marques, no âmbito do CEM, que envolve uma rede comparativa de pesquisa formada por cientistas internacionais, dedicados a estudos sobre Paris, Londres, Milão, Cidade do México e São Paulo. O CEM é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “Em termos teóricos mais amplos, nossas pesquisas querem mostrar que os processos e os atores que estão por trás da governança de grandes cidades são os mesmos nas cidades dos chamados Norte e Sul”, destaca.
Ciência Política e o urbano
Para elaborar um aporte teórico que seja válido para o estudo da governança urbana de qualquer grande cidade, seja de países mais ou menos desenvolvidos, é preciso superar um paradoxo criado pelas teorias vigentes. Uma delas aponta que grandes cidades são consideradas como praticamente ingovernáveis.
Isso ocorreria, em especial, em países como o Brasil, caracterizado pela elevada desigualdade social e pobreza, e pela presença de elementos institucionais como o multipartidarismo e o sistema partidário fragmentado, as baixas capacidades administrativas locais, imersas em federalismo competitivo no qual municípios, estados e governo federal não conseguem promover ações coordenadas. “Parte da literatura no campo da Ciência Política define que cidades com essas características seriam ingovernáveis. Isso se aplica a São Paulo, mas também a cidades do Norte, como Londres e Nova York”, pontua.
Se cidades como a capital paulista são ingovernáveis, como foi possível produzir um conjunto amplo de políticas direcionadas para a redução da desigualdade de forma sustentada por um período longo de tempo? Este é o paradoxo que o livro se propõe a resolver, dialogando com teorias discutidas pela Ciência Política. Uma é a teoria do eleitor mediano: em contextos políticos muito desiguais, em que grande parte das pessoas é pobre, todos os partidos vão tentar fazer políticas para essa classe social, dado que são maioria. Uma outra teoria, do voto partidário, diz que os governos de esquerda defendem, criam e implementam mais políticas redistributivas do que governos de direita.
“Essas duas teorias parecem incompatíveis entre si: uma diz que todo mundo vai fazer política para os mais pobres; a outra diz que os governos de esquerda majoritariamente vão fazê-lo. No livro, associamos as duas teorias, na verdade, para explicar a competição partidária”, explica Marques. Segundo ele, os governos de esquerda iniciam as políticas redistributivas, mas, em razão da competição política, os de direita tentam não ferir o interesse dos mais pobres, e acabam por manter as de redistribuição fácil, que oferecem, teoricamente, menos custo político.
O capítulo de introdução discute esse paradoxo e apresenta a nova forma de estudar as cidades, a partir do caso de São Paulo. A seguir, traz uma série de estudos de diversos autores, todos ligados ao CEM, sobre a capital paulistana. A primeira parte foca as políticas do urbano e as instituições. A segunda aborda a governança de serviços públicos. A terceira discute temas relacionados às políticas de usos e ocupação do solo e habitação. Na conclusão, Marques relaciona os estudos apresentados com a produção política do progressivismo incremental.
Solucionando o paradoxo
Três fatores, interligados entre si, contribuem para explicar por que uma cidade como São Paulo, em teoria, ingovernável, e que tem predominantemente eleitores conservadores, menos inclinados a políticas redistributivas, consegue produzir políticas que diminuem as desigualdades. Governos de direita e de esquerda vêm se alternando no poder em São Paulo. Os de esquerda são os que mais inovam na produção de políticas de redução da desigualdade. Mas os de direita, por força da competição eleitoral, acabam por manter parte dessas políticas, mesmo que com menor intensidade. Elementos ligados à produção das políticas completam o quadro, com a construção paulatina de capacidades políticas, fiscais, administrativas e de coordenação do Estado, o estabelecimento de novos instrumentos de política pública, e a existência de padrões de interpenetração entre atores do Estado e da sociedade civil na produção das políticas.
Outra dimensão descritiva relevante diz respeito aos tipos de redistribuição envolvidos. As de redistribuição difícil são aquelas em que, para distribuir para uns, é preciso tirar de outros. Esses casos são mais conflitivos politicamente, como na implantação de corredores de ônibus, que retiram espaço viário dos carros. Programas de redistribuição fácil são aqueles em que a sociedade não percebe claramente que a sua oferta para um grupo envolve, de alguma forma, a redução de benefícios ou o financiamento cruzado de outros grupos, como nas isenções tarifárias em ônibus e metrô para idosos. Programas de redistribuição fácil tendem a ser menos descontinuadas por governos de direita do que as de redistribuição difícil.
Programas de redistribuição difícil, diferentemente, tendem a ser mais interrompidos. A maioria, entretanto, é retomada quando assume um outro governo de esquerda. Esse retorno da latência é possibilitado pela própria produção das políticas. Durante governos de esquerda entram para a gestão das políticas defensores das políticas redistributivas, como militantes de movimentos sociais e acadêmicos, por exemplo. Tais profissionais saem dos órgãos públicos quando há uma mudança na administração, mas conservam a memória de tais programas em latência, que viabiliza a sua retomada quando um partido de esquerda volta ao poder.
O livro também se insere em um debate sobre o comparativismo urbano, em que se discute o fato de que as teorias sobre cidades foram feitas a partir de processos observados em cidades do Norte, como Londres, Paris, Berlim, Chicago e Nova Iorque. “Hoje, tem quem defenda que é preciso fazer teorias a partir do contexto das cidades do Sul para superarmos essa limitação, mas acredito que é preciso fazer teoria a partir de uma avaliação completa do fenômeno, incluindo o Sul e o Norte, partindo de categorias que existam em ambos os lugares e permitam a comparação”, pondera. “Foi isso que fizemos no livro, trabalhar categorias que possam ser comparáveis. Os processos que observamos em São Paulo e descrevemos no livro podem ocorrer em qualquer cidade, não é específico de cidades localizadas em países mais pobres”, conclui.
Mais informações sobre o livro “The Politics of Incremental Progressivism: Governments, Governances and Urban Policy Changes in São Paulo” no site da Editora Wiley. A publicação está à venda em diversos sites na internet.
Sobre o CEM:
Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.
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