Livro do CEM mostra como o legal e o ilegal se entrelaçam na periferia de São Paulo

Em “Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida”, Daniel Veloso Hirata mostra que não há ausência ou governo paralelo nesses locais, mas sim que Estado e atividades ilegais estão articulados

É um pensamento corrente que atividades ilegais, como o tráfico de drogas, ocupam o espaço das periferias das grandes cidades porque o Estado não se faz presente e que elas estabelecem uma espécie de governo paralelo. Em seu livro “Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida”, o sociólogo Daniel Veloso Hirata desmistifica essa ideia e mostra como, na realidade, o Estado está entrelaçado com as situações de ilegalidade e os chamados mundos legal e ilegal estão conectados. Para marcar o lançamento do livro em São Paulo, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) promove no dia 21 de novembro, das 14h às 17h, um encontro com o autor, no qual ele vai apresentar sua pesquisa e o livro. O evento, gratuito, será realizado no auditório 24, no andar térreo do Edifício da Filosofia e Ciências Sociais da FFLCH-USP, no campus Butantã - Avenida Professor Luciano Gualberto, 315. Inscrições aqui.

capa-sobreviver_na_adversidade-hirata_daniel-2018.jpgO livro é resultado de sua pesquisa de doutoramento. Trata-se do terceiro volume da Coleção Marginália de Estudos Urbanos, editada pela EDUFScar em parceria com o CEM, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (CEPID-FAPESP). Atualmente Hirata é professor do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (GSO-UFF), do Programa de Pós Graduação em Sociologia (PPGS/UFF) e do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF). O lançamento oficial da editora na capital paulista será no dia 14 de novembro, às 18h30, na Livraria Tapera Taperá, no Centro.

A pesquisa de Hirata faz parte de um conjunto de estudos que começaram na década de 2000 no Departamento de Sociologia a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e foi continuado no CEM para abordar a transformação do mercado de trabalho e as novas configurações sócio-espaciais da cidade diante da reestruturação produtiva pela qual a Região Metropolitana de São Paulo passava, com a migração das indústrias, a ascensão do setor de serviços, a redução da importância de entidades como associações de bairro, religiosas, sindicais etc.

A partir da convivência com moradores e de depoimentos que traçam histórias de vida de pessoas de um bairro da Zona Sul de São Paulo, ele estudou as inter-relações existentes entre os mercados informais e/ou ilegais com o mundo da legalidade estatal e a correlativa exposição ao perigo de morte por parte de seus habitantes. Ele selecionou três postos de observação – uma pequena birosca, uma linha de transporte clandestino e um ponto de venda de drogas (biqueira) – para estudar, empiricamente, como se dão essas relações. Em cada um deles, há um personagem para conduzir a narração das questões propostas na pesquisa e apresentadas no livro.

O trabalho de Hirata buscou fazer uma reflexão sobre como se processa a vida de pessoas nesses mercados, os ‘guerreiros’, que sobrevivem em uma estrutura marcada pela guerra, seja com a polícia, seja com os rivais. Ao trabalhar com os aportes teórico-metodológicos da Sociologia Urbana que trariam a teoria de base para explicar os fenômenos que observou, o pesquisador viu a necessidade de inovar na análise. “A questão da legalidade e ilegalidade eram temas tratados de forma muito separada na literatura corrente, que vinha da tradição dos estudos urbanos”, conta.

A pesquisa buscou, então, construir uma perspectiva que tratasse “ordem” e “desordem” pelas suas conexões e não fizesse a separação fácil entre cidadão ‘do bem’ e ‘bandidos’, explorando a miríades de situações que atravessavam a vida dos habitantes das periferias da cidade. As diversas formas da economia popular foram seus objetos. “Trata-se de economias que funcionam conectando essas coisas e a maneira como elas se conectam foi o que me interessou”, completa. Segundo ele, há um grande número de pessoas cujas vidas funcionam nessas práticas, nessa ‘área cinza’. Trata-se do ilegalismo, conceito trazido por Hirata do filósofo francês Michel Foucault e que ajuda a entender as práticas sociais que se dão nos interstícios entre o legal e ilegal – e que é diferente de ilegalidade, um conceito jurídico.

“Não há ausência, e sim a presença de Estado. Não é possível entender, por exemplo, a disposição dos pontos de venda de drogas se você não entender o posicionamento das delegacias da Polícia Civil e dos batalhões da Polícia Militar”, afirma. “As instituições que se organizam para controlar esses mercados, na verdade, acabam por regulá-lo”, acrescenta. É o que se observou nas reuniões em que traficantes faziam os pagamentos semanais a policiais civis. “É como uma compra de ‘alvará de funcionamento’, na qual uma delegacia autoriza, informalmente, o funcionamento daquele ponto, mediante pagamento”, compara.

Outro exemplo são as rondas da Polícia Militar que resultavam no sequestro de algum morador. Pedia-se resgaste e o valor variava de acordo com a posição do sequestrado no tráfico, se tinha ou não passagem pela polícia, se era ou não ligado ao tráfico etc. “São práticas que deixam evidente que as atividades ilegais não funcionam de forma paralela ao Estado e de que não há uma ausência do Estado nesses locais, mas que o legal e o ilegal funcionam juntos, são articulados”, ressalta.

A mediação do PCC

Um exemplo claro dessa articulação é observado na questão da queda dos homicídios. No discurso oficial, atribui-se essa diminuição ao fato de São Paulo ter uma polícia mais moderna, mais eficiente e por ter investido no sistema prisional, com destaque para a construção de novos presídios. Um conjunto de estudos feitos por pesquisadores como Gabriel Feltran, Karina Biondi, Adalton Marques e Vera Telles, conseguiu detectar que essa baixa se deu muito mais em razão da mediação do Primeiro Comando da Capital (PCC). “Foi uma dinâmica interna do próprio crime que promoveu essa redução”, aponta.

No caso do bairro estudado por Hirata, ele pôde observar que a ascensão do PCC depois da expulsão dos grupos de extermínio que operavam na região. O PCC nasceu nos presídios como organização focada na garantia de sobrevivência dos que estavam detidos, mas desenvolveu conexões extramuros. “Quando se conecta o dentro e o fora dos presídios, o que ocorre com o PCC, as coisas mudam”, diz.

Outro exemplo do ilegalismo se expressou quando o então prefeito Paulo Maluf extinguiu a Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC) em 1995 e privatizou o sistema, surgiu uma rede de transportes clandestinos, os chamados ‘perueiros’, que passaram a operar nos trajetos que tinham menor demanda e interessaram menos às grandes empresas, já que a remuneração passou a ser por viagem, e não por passageiro. Esse tipo de transporte passou a contar com a proteção dos fiscais de linhas, que faziam ‘vista grossa’ em troca de propina.

Com a introdução do Bilhete Único, na gestão de Marta Suplicy, e a oferta de fazer várias viagens pagando por apenas uma passagem, a prefeitura ‘quebrou’ as vantagens do transporte clandestino Houve, então, uma formalização desses trabalhadores, que passaram a integrar cooperativas e deixaram de ser donos do ônibus para serem motoristas.

Para Hirata, é possível pensar que o ilegalismo é uma característica comum à periferia das grandes cidades, apesar de se expressar de formas particulares, de acordo com suas características e história de formação. Ele também observa que as pessoas que trabalham no contexto do ilegalismo nem sempre partem de uma situação menos para mais grave. “Aquele que fica olhando se a polícia chega para avisar os demais não vai necessariamente se transformar em um grande traficante depois. Há exemplos de pessoas que têm negócios ilegais e legais, e, no caso desses últimos, eles seguem as normas corretamente. Eles emitem notas fiscais, recolhem impostos, obedecem as normas trabalhistas etc, muitas vezes de forma muito mais rigorosa até do que muitos outros negociantes que só atuam com o comércio legal”, diz.

A pesquisa preservou o sigilo dos depoentes e não explicita o local, para não colocar seus participantes em risco. Também não traz um julgamento moral. “Quis entender as conexões e as negociações morais que as pessoas fazem. Em sua maioria, quem mora na periferia está tentando tocar a vida”, conclui.

 

Serviço:

Evento: Lançamento do livro “Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida” – Conversa com o autor Daniel Veloso Hirata

Data e horário: 21 de novembro, às 14h

Local: Auditório 24 do Edifício da Filosofia e Ciências Sociais da FFLCH-USP. Andar Térreo.

Endereço: Avenida Professor Luciano Gualberto, 315, campus Butantã.

 

Ficha Técnica:

Título: Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida

Editora: EDUFScar

Ano de Publicação: 2018

Autor: Daniel Veloso Hirata

Edição: Primeira

ISBN: 978-85-7600-494-3

Páginas: 258

Sumário: clique aqui 

 

Sobre o CEM:

Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Universidade de São Paulo (USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.

 

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