Mais de 70% das políticas de combate às desigualdades foram criadas por governos de esquerda na cidade de SP

No livro “El Futuro de las ciudades”, Eduardo Marques, diretor do CEM, analisa a evolução das políticas redistributivas em São Paulo desde a redemocratização a partir de um novo conceito para análise das cidades, o progressivismo incremental.

Janaína Simões

Em estudo publicado no livro "El futuro de las ciudades" (O Futuro das Cidades), que acaba de ser lançada pela Flacso Ecuador, Eduardo Marques, diretor do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-Cepid/Fapesp), traz os resultados de sua investigação sobre 31 programas redistributivos dos oito principais setores da política urbana da cidade de São Paulo. A pesquisa revela que governos de esquerda iniciaram 73% dos programas redistributivos em São Paulo, enquanto os centro-direita foram responsáveis por 21% e de direita por 6%. 

Marques analisa a evolução desses programas, focados na redução das desigualdades, por meio do conceito de progressivismo incremental, um processo lento e contínuo, permeado por conflitos e disputas, caracterizado pela existência de inovações nas políticas redistributivas, introduzidas pelos governos de esquerda e que são continuadas por governos de direita. Este processo é impulsionado pela intensa competição política em nível local, gerando inclusive, uma convergência entre políticas, sem entretanto apagar as diferenças entre governos com distintas  colorações ideológicas. O conceito foi desenvolvido por Marques em seu recente livro - “The Politics of Incremental Progressivism” - como uma nova metodologia para se analisar as metrópoles e é aplicado no capítulo  "La gobernanza de las metrópolis y los desafíos de la inclusión: la trayectoria de São Paulo" (O governo das metrópoles e os desafios da inclusão: a trajetória de São Paulo), agora publicado no livro da Flacso Ecuador.

O progressivismo incremental tem indicado, inclusive, uma redução das diferenças entre esquerda e direita no Brasil, de forma compatível com os mecanismos descritos pela teoria do eleitor mediano. “Embora a criação de políticas dependa da ideologia, e principalmente a esquerda os inicia, a maioria dos políticos evita desmantelá-los, considerando que o eleitorado da cidade é esmagadoramente pobre”, explica Marques no texto. 

Capa do livro

Como atuam direita e esquerda em São Paulo 

A análise geral sobre os oito setores da política - serviços de ônibus, controle de tráfego, coleta de resíduos sólidos, habitação, regulamentação do desenvolvimento imobiliário, renovação urbana e infraestrutura rodoviária (todos municipais), além do metrô (nível estadual) - indica crescimento do número de programas, aumento de sua oferta em cada governo (diversificação), bem como uma intensificação da implementação, isto durante todo o período analisado, que vai da redemocratização com a Constituição de 1988 até 2021. 

“Alguns programas existiam em quase todos os governos – tarifas fixas para ônibus e metrô e construção de novas unidades habitacionais –, enquanto outros existiam muito raramente, como a criação de uma taxa de recolha de resíduos ou projetos habitacionais mais bem localizados. Governos de esquerda (Erundina, Suplicy e Haddad) criaram programas redistributivos com muito com mais frequência do que governos de direita (Quadros, Maluf e Pitta), com governos de centro-direita (Covas, Serra e Kassab) entre os dois. De fato, a esquerda iniciou 73% dos programas, a centro-direita 21% e a direita 6%”, aponta. 

Ao analisar os projetos interrompidos, nota-se que 75% deles foram abandonados por governos de direita, enquanto a centro-direita respondeu por 25% das interrupções e os governos de esquerda não descontinuaram programas redistributivos. “A maioria dos programas interrompidos (70%) foi iniciativas de redistribuição politicamente onerosas, uma vez que envolviam formas mais visíveis de redistribuição, nas quais grupos poderosos veriam seus interesses lesados, como na melhor regulação dos serviços de limpeza urbana (reduzindo a remuneração de empreiteiros privados ou exigindo melhor qualidade de serviços) ou na implementação de corredores dedicados para ônibus (às custas de espaço viário para carros)”, comenta Marques no estudo. 

Na análise dos 31 programas, Marques descobriu, também, políticas se mantiveram em latência e foram reanimadas ao entrar governos mais favoráveis, e que caracterizam o progressivismo incremental. Em alguns casos, a retomada é feita em ritmo até mais intenso do que quando foram inicialmente adotadas. “Isto se deve à presença de elementos políticos multiníveis e presença de atores da sociedade civil em setores da política e da burocracia militante”, explica. Marques mostra que 96% dos programas que pararam e retornaram o fizeram após um ou dois mandatos, e isso ocorreu no próximo governo de esquerda.

“Infelizmente, também vimos que a situação federal, que havia sido favorável ao desenvolvimento de políticas redistributivas locais desde a redemocratização e, principalmente, após 2003, foi revertida a partir de 2015”, aponta. Marques se refere ao período em que o governo federal voltou a atuar na regulação, planejamento, incentivo e investimentos nas políticas focadas nas cidades e no urbano, em 2003, especialmente com a criação do Ministério das Cidades, e em como essas políticas perderam ímpeto ao longo dos anos, impactando nas regiões metropolitanas e nos municípios. Antes mesmo da pandemia de Covid-19, o governo federal começou a desorganizar os sistemas de regulação e financiamento de políticas urbanas previamente construídas. 

A situação só piorou ainda mais no período posterior ao da gestão do presidente Jair Bolsonaro, com o desmantelamento e desorganização da política para o urbano no Brasil. “Os efeitos da pandemia em termos econômicos, sociais e políticos certamente são bastante prejudiciais e, aparentemente, será responsabilidade dos governos municipais enfrentar esses desafios, dada a recente e completa retirada do governo nacional do palco político”, conclui Marques.

O livro "El futuro de las ciudades"

O livro "El futuro de las ciudades"  reúne escritos de 41 pesquisadores que discutiram, em seminários prévios, a trajetória histórica de 24 cidades da América Latina (17 cidades), Europa (3), Estados Unidos (3) e sudeste asiático (1), escolhidas como sendo as mais representativas da diversidade urbana desses locais. As pesquisas que formam o livro adotaram uma perspectiva latino-americana a partir do Sul global como método de análise. As cidades foram classificadas em três grandes blocos: metrópoles globais (na qual se insere São Paulo); metrópoles continentais; cidades intermediárias. 

As cidades da Europa, EUA e sudeste da Ásia serviram como referência da trajetória e transformações ocorridas nas cidades do Norte Global e serviram de contraponto para a reflexão sobre semelhanças e diferenças em relação às cidades do continente latino-americano. Os 41 pesquisadores que assinam os capítulos do livro participaram de um ciclo de debates ao longo de 2020 e 2021, os quais reuniram estudantes, pesquisadores, planejadores urbanos e dirigentes de associações da sociedade civil. 

Foram identificados quatro temas centrais que estruturam o debate sobre o futuro das cidades (a teoria crítica do mercado, a produção social de habitação, a infraestrutura urbana e a cidade neoliberal na América Latina) e sete temas específicos (planejamento, cidadania, direitos, paisagem, fronteira, obsolescência, turismo) - uma agenda temática que oferece ao leitor algumas chaves conceituais e analíticas de leitura sobre as 24 cidades.

O objetivo do livro é “recolocar na agenda o debate público sobre se as cidades serão as mesmas no mundo pós-covid, ou se os efeitos da pandemia vão precipitar mudanças estruturais nas cidades e na vida urbana”, como apontam os organizadores/editores Fernando Carrión, Marcelo Corti, Patricia Ramírez Kuri e Pedro Abramo. Paulina Cepeda foi a editora geral da obra editada pela Flacso Ecuador. A publicação pode ser acessada, na íntegra e gratuitamente, aqui


Sobre o CEM:
Criado em 2000, com início das atividades em 2001, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.


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