Recursos de transferências federais compensam de maneira desigual perda de arrecadação de estados e capitais no 1º semestre

Não houve sintonia entre os repasses do Programa Federativo de Enfrentamento à Covid-19 e a perda arrecadatória de estados e municípios.

Janaína Simões

Apesar do aprofundamento da crise econômica causado pela pandemia da covid-19, os estados brasileiros registraram certa estabilidade de receitas durante o primeiro semestre de 2020 e as capitais chegaram a obter um aumento de 4% no período. A arrecadação de impostos menos negativa do que o esperado e a transferência do socorro fiscal da União, prevista na lei complementar 173/2020, explicam este quadro. As transferências aos estados e às capitais não foram, em sua maioria, vinculadas a despesas específicas nem foram direcionadas aos locais mais atingidos por infecções e óbitos, resultante da falta de sintonia entre o Programa Federativo de Enfrentamento à Covid-19 e as políticas de saúde. Além disso, apesar de estados e capitais terem registrado um expressivo aumento nos gastos em saúde, os gastos totais foram menores do que no primeiro semestre de 2019.

Os dados constam de estudo coordenado pela pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-Cepid/Fapesp) e professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, Ursula Dias Peres, e por Fábio Pereira dos Santos, técnico da Câmara Municipal de São Paulo. A pesquisa foi feita no âmbito da Rede de Pesquisa Solidária e pode ser lida na íntegra na Nota Técnica 23, em http://oic.nap.usp.br/wp-content/uploads/2020/09/BoletimPPS_23_17agosto.pdf

(Foto: Marcos Santos/USP Imagens)

Nos estados, a Receita Corrente Líquida (RCL) caiu no terceiro bimestre, mas ficou praticamente estável em relação ao primeiro semestre de 2019. A queda global do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) dos estados no semestre foi de 6%, mas é possível perceber diferenças expressivas entre os estados, com perdas de até 11,9% (Ceará) e ganhos de até 10,7% (Mato Grosso do Sul). 

Já as capitais tiveram perda de 1% na RCL no terceiro bimestre, mas registraram 4% de aumento real no primeiro semestre deste ano ante o mesmo período de 2019. A maioria apresentou queda do Imposto sobre Serviços (ISS), mas a redução, em média de 2,6%, foi inferior ao esperado. Já a cota-parte do ICMS teve queda maior, de aproximadamente 5%. Esses resultados foram compensados pelo aumento das transferências correntes da União. Algumas capitais não registraram perda de arrecadação no semestre, como Belo Horizonte e Manaus, enquanto outras tiveram perdas mais expressivas, como São Paulo e Rio de Janeiro. 

Transferências federais: desigualdades
As transferências federais foram viabilizadas pelo Programa Federativo de Enfrentamento à Covid-19. O socorro veio principalmente por meio da Lei Complementar 173/2020, aprovada pelo Congresso em maio. A lei determinou a transferência de R$ 60,15 bilhões para estados e municípios para compensar perdas tributárias e permitiu a suspensão do pagamento das dívidas com a União e com outras instituições até o final de 2020. Também foram aprovadas medidas de manutenção dos níveis de transferência dos fundos de participação de estados e municípios (FPE e FPM, respectivamente) no valor de R$ 16 bilhões e liberados recursos federais para transferências por meio do Ministério da Saúde e outros ministérios.

No caso dos estados, a distribuição do socorro fiscal que se deu via outras transferências da União foi desigual. Em alguns casos significou uma alta maior que a perda registrada de arrecadação. Alguns estados sequer tiveram perda arrecadatória e receberam o socorro fiscal, com ganho expressivo de receita corrente líquida. Foi o que ocorreu com o Mato Grosso, que teve um aumento de Receita Corrente Líquida no semestre de quase 20%. “Esse desacerto se expressou também na ausência de sintonia entre a distribuição do apoio financeiro da União e a situação dos estados atingidos pela pandemia, em especial no número de mortes por Covid-19. Os estados que tiveram mais mortes nesse período não foram necessariamente os mais beneficiados pelo socorro fiscal”, apontam.

Também nas capitais a distribuição das outras transferências da União não guarda correlação com o número de mortes por Covid-19 e mostram uma distribuição bastante desigual. A maioria das capitais recebeu volumes maiores que as perdas. Já Rio de Janeiro e João Pessoa receberam volumes menores de transferências do Programa Federativo de Enfrentamento à Covid-19 em relação às perdas de receita. Belo Horizonte, Boa Vista e Manaus, por exemplo, receberam recursos sem acusarem perdas de arrecadação.

O socorro fiscal da União não foi vinculado a despesas específicas. “A substituição de receitas de impostos por outras transferências correntes da União significou, por exemplo, um menor volume de recursos a serem despendidos obrigatoriamente em educação, tanto por estados quanto por municípios, pois essas transferências não estão vinculadas à Manutenção e Desenvolvimento do Ensino”, acrescentam.

A suspensão dos serviços da dívida, outra medida de socorro fiscal aprovada na LC 173/2020, também foi desigual. O benefício aos estados foi  concentrado em São Paulo e Goiás. A suspensão do serviço da dívida também não beneficiou a totalidade das capitais e a redução de cerca de R$ 1,1 bilhão nessa despesa ficou concentrada nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

A pesquisa analisa as despesas e mostra que o volume de gasto quase estável em relação a 2019 foi possibilitado, principalmente, pelas outras transferências correntes da União. Nos estados, a saúde, como esperado, registrou a maior elevação dos gastos em valores absolutos (16,2% ou R$ 7 bilhões a mais em 2020). Também nas capitais a despesa de maior volume foi na área da saúde, que registrou aumento de 8% em relação à liquidação de 2019. 

“Diante do quadro atual de receitas e despesas e a continuidade do enfrentamento da pandemia, que se desenvolve desigualmente nos estados, é importante repensar e aprimorar os mecanismos de distribuição de recursos. O socorro fiscal deve ter seu foco nos estados e municípios com maiores perdas de impostos, de modo a manter seu equilíbrio financeiro e garantir a oferta de serviços públicos à população brasileira.”, recomendam os pesquisadores. 


Sobre o CEM:
Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Universidade de São Paulo (USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.


Atendimento à imprensa
Janaína Simões
Assessoria de Comunicação do CEM
E-mail: imprensa.cem@usp.br
Fone: 55 (11) 3091-2097 / 55 (11) 99903-6604