Pesquisadora do CEM analisa políticas participativas nos governos PT

Carla Bezerra estuda como essas políticas contribuíram para a governabilidade petista em gestões em nível municipal, estadual e federal.

Janaína Simões

Na medida em que foi conquistando espaço político, o Partido dos Trabalhadores (PT) promoveu mudanças nas políticas participativas aplicadas pelos seus governos, de modo a combinar interesses ideológicos, relacionados à sua identidade e base política fundadas nos movimentos sociais, e pragmáticos, promovendo a multiplicação de canais de interação Estado-sociedade para formar uma coalização que apoiasse o governo. Como o partido fez e usou esta combinação em gestões municipais, estaduais e federais foi o objeto da pesquisa desenvolvida por Carla Bezerra, que integra a equipe de cientistas associados ao Centro de Estudos da Metrópole (CEM-Cepid/Fapesp). A íntegra da pesquisa pode ser acessada aqui.

A maior parte dos estudos que analisam as políticas participativas se debruçam sobre o papel dos movimentos sociais e da sociedade civil na demanda de espaços participativos. Já a pesquisa feita por Carla inova ao busca entender as razões, importância e vantagens que um partido que está no governo obteria ao abrir esse espaço para os movimentos sociais influenciarem sobre a política de governo. “Pesquisei a razão pela qual o PT vai adotar políticas de participação e como isto está relacionado e pôde contribuir para a governabilidade, para a capacidade do partido de governar, implementar sua agenda política”, explica Carla.

A análise recupera dados dos anos de 1980, quando a posição do PT na institucionalidade política era baixa, ou seja, quando ele ainda não ocupava um número expressivo de postos no Legislativo e Executivo, e caminha para quando o partido vai conquistando cada vez mais espaço, a partir das eleições que trouxeram líderes petistas para o governo de grandes cidades e estados, até chegar ao governo federal, com as presidências de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. A pesquisa foi desenvolvida por Carla durante seu doutorado em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), e orientada pelo vice-diretor do CEM e professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP, Adrian Gurza Lavalle. O título da tese é “Ideologia e Governabilidade: as Políticas Participativas nos Governos do PT”. 

“Meu pressuposto teórico foi entender como o PT conseguiu fazer com que esta base cumprisse um papel importante em seus governos, e procuro mostrar que isto se deu por meio da expansão de políticas participativas”, diz. Ela destaca o desenvolvimento de três políticas de participação social – orçamento participativo, conselhos e conferências nacionais – aplicadas pelo PT por gestões nas três esferas de governo: municipal (Porto Alegre), estadual (Rio Grande do Sul) e federal (mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.)

O estudo mostra que, de forma geral, as políticas participativas foram uma confluência entre interesses ideológicos e pragmáticos, e geraram ganhos de capacidades em duas esferas. Na política (politics), possibilitou a ampliação de sua base de apoio social, fortalecendo a capacidade de governar. Na política pública (policy), desenvolveu programas e ações melhores adaptados às demandas locais e de grupos específicos. 

Para fazer a pesquisa, Carla utilizou o chamado process tracing, metodologia que permitiu a ela reconstruir o processo histórico e identificar os fatores que explicam as motivações do PT para a adoção de políticas participativas. Foram analisados documentos nacionais do próprio PT e de governos, e feitas 30 entrevistas com pessoas ligadas ao partido e que atuaram nos governos analisados, que resultaram em mais de 40 horas de conversas gravadas. 

As políticas participativas não são uma ‘exclusividade’ dos governos petistas. “Uma série de partidos tiveram um compromisso de ampliação de políticas participativas, mas digamos que a intensidade com que o PT fez isso foi maior ao longo da sua trajetória, o que tem a ver com sua base social, enquanto outros partidos talvez tenham colocado isso num plano secundário”, comenta. No governo do PSDB, por exemplo, foram criados conselhos e conferências em número significativo. “Quando chegamos ao governo Lula, há um salto muito alto, então notamos que a diferença está na intensidade ao adotar essas políticas”, ressalta.

Participação política
                                 Imagem: (editada): Kristin Baldeschwiler/Pixabay 

No primeiro capítulo da tese, Carla discute a evolução das ideias do partido sobre a participação social para entender como ele foi se posicionando sobre este tema ao longo do tempo. Para isso, ela fez análises sistemáticas de documentos do PT como as resoluções partidárias, por exemplo, que foram produzidos entre 1980 e 2016. “Pude observar onde tinha pontos de mudança, e vi que eles estavam muitas vezes associados à posição institucional do partido”, comenta. Por exemplo: na década de 1980, quando o PT praticamente não ocupava prefeituras, o partido defendia que os movimentos sociais tinham de governar. A participação era praticamente uma associação direta a uma revolução socialista. “Na medida em que o partido vai ocupando mais prefeituras, ele modera o discurso e passa a dizer que é uma cogestão”, diz. 

Um exemplo de análise no nível local: a experiência do orçamento participativo

Uma das ações no campo das políticas participativas analisadas por Carla ao abordar o nível municipal foi a experiência do orçamento participativo, destaque durante a gestão do PT no município de Porto Alegre e depois expandida para diversos municípios, inclusive não governados pelo PT. Em 2004, quase 140 cidades tinham adotado esta política, de acordo com o levantamento feito pela pesquisadora. No caso da capital gaúcha, permitia ao governo local discutir a aplicação de recursos escassos em demandas consideradas importantes pela sociedade, e especialmente nas regiões mais pobres da cidade. 

Além de atender a uma agenda política focada nos mais necessitados, o mecanismo foi instrumento para a governabilidade. Isso porque o orçamento participativo cumpriu o papel de pressionar os parlamentares na Câmara de Vereadores e Assembleia Estadual do Rio Grande do Sul. “O governo não tinha maioria para aprovar suas leis e programas no Parlamento, mas o Orçamento Participativo gerava grande mobilização de cidadãos organizados e não-organizados e uma pressão extra”, lembra. Quando chegava na Câmara, os vereadores tinham grande dificuldade para apresentar argumentos que justificassem as eventuais emendas. “Isso fortalecia capacidade de governar do partido, pois conseguia implementar sua agenda, mesmo tendo minoria”, acrescenta.

Esta forma de gerir o orçamento municipal ganhou destaque internacional e era muito importante para o PT, mas deixou de sê-lo quando o partido chegou ao governo federal. Contribuiu para este processo a mudança na política de alianças do partido, quando o PT se prepara para disputar de forma mais competitiva o governo federal, em 2002, e também a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal. “Com o passar do tempo, o PT passou a governar municípios com coalizações majoritárias, o que gerou impacto nas alianças, e a Lei de Responsabilidade Fiscal enrijeceu, em certa medida, a execução orçamentária dos municípios. Daí a estratégia do orçamento participativo se enfraquece quando o partido passa a ocupar administrações estaduais, pois ela deixa de ter a função muito forte de pressionar as Assembleias, agora que o partido que já tem a maioria”, explica. 

A governabilidade e políticas participativas nas gestões estadual e federal

Para estudar o nível estadual e a relação destes mandatos com a posição institucional do PT no cenário político nacional, Carla compara dois mandatos petistas do Rio Grande do Sul: Olívio Dutra (1999-2003) e Tarso Genro (2011-2014). Esta escolha permite à pesquisadora analisar governos que ocorrem em momentos da trajetória política do PT nos quais os arranjos de governabilidade são distintos quando se observa o partido no nível nacional. No caso do período do governo Dutra, o PT ocupava, basicamente, prefeituras; já na época de Tarso Genro, o PT estava no governo federal. Segundo a pesquisadora, a análise mostra que o PT teve sucesso em políticas participativas bem-sucedidas no nível municipal, mas não no estadual, e também que há uma forte influência do Estado na política nacional do PT. 

No governo Dutra, a coalização era parcial, o partido tinha minoria, se posicionava contra a gestão federal do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e tinha baixa presença nas prefeituras. A governança era marcada pelo conflito permanente com a oposição, no nível estadual, mas o governo conseguiu transpor para o estado programas adotados em nível municipal. Já no governo Tarso Genro, a coalização foi ampla, havia maioria na Assembleia Legislativa, o governo federal já era ocupado por Dilma, um forte aliado, e havia alta presença do PT em prefeituras. A governança neste período foi marcada pela concertação com os atores e, no campo das políticas sociais, pela busca da articulação de estruturas já existentes.

No governo federal, a participação social não vai mais servir a pressionar o parlamento, já que o PT conseguiu construir, por outras vias, uma maioria parlamentar. Apesar disso, a participação da sociedade civil continua sendo importante para construir a governabilidade. “A participação social continua a existir nas gestões petistas, mas muda de lugar. Em vez de estimular um debate sobre o orçamento, o PT começa a estimular a participação da sociedade civil no debate sobre a formulação de políticas setoriais, estimulando as conferências nacionais e a criação de conselhos”, destaca. 

As conferências, por exemplo, legitimavam as demandas e serviram como espaço para facilitar a articulação com os movimentos sociais e para que estes se organizassem para apresentar uma agenda consolidada para o governo. “Isso também levava pressão para dentro do parlamento porque determinadas demandas, se apresentadas de forma fragmentada, sem força, ficariam enfraquecidas no Congresso. Tem uma série de políticas públicas que são decorrentes desse processo”, lembra. 

A governabilidade petista é construída, então, a partir desta forma de articulação com a sociedade civil. Para isso, foram feitas alterações na estrutura da própria Presidência da República, na qual a Casa Civil faz a coordenação do governo; a Secretaria de Relações Institucionais cuida da relação com o Congresso; e a Secretaria-Geral faz a gestão a relação com a sociedade civil. “Esta estrutura reflete como PT pensava a construção da governabilidade, ou seja, você tem ‘braços’ de combinação para conseguir fazer as articulações necessárias para a implementação de políticas, para governar”, diz. 

Carla destaca, ainda, a circulação de pessoas de perfis técnico e político que ocuparam cargos em Porto Alegre e no governo estadual do Rio Grande do Sul, e que vão depois auxiliar na elaboração da política pública no governo federal. Outro aspecto relevante da política de participação social foi seu papel de mitigação de conflitos, algo que não aparece nas experiências dos governos municipal e estadual, mas que tiveram papel muito importante no nível federal. 

Segundo Carla, existe uma continuidade entre as duas gestões petistas no governo federal no que tange às políticas participativas. O governo Lula, porém, contava com uma base parlamentar mais bem definida, enquanto que, ao longo do governo Dilma, diminui a presença do próprio partido no governo e aumenta a do PMDB. “O PT deixa de ter tanta capacidade de incidir em algumas áreas no governo Dilma. No governo Lula, o PT ocupava mais ministérios na Esplanada sozinho”, lembra. 

Há também uma diferença de perfil de comando: enquanto no governo Lula havia preocupação sobre receber todas as demandas e dar respostas a elas, no governo Dilma o foco estava na organização destas demandas e dos programas e políticas criados para atendê-las e como dar escala para os grandes programas. Assim, muitos programas que eram pequenos, executados pela sociedade civil, foram abandonados. A presidente manteve os conselhos e conferências, mas houve redução da frequência de reuniões, de mesas de negociação, e também diminuiu o papel dos movimentos sociais na execução de programas. Leia a íntegra da tese.


Sobre o CEM:
Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Universidade de São Paulo (USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.


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