Organizações e movimentos sociais ampliam as capacidades do Estado para atender demandas da sociedade

Adrian Gurza Lavalle, pesquisador do CEM, é um dos organizadores de livro que propõe nova forma de analisar a relação entre Estado e movimentos sociais.

Janaína Simões

Um dos resultados da interação entre o Estado, de um lado, e os movimentos sociais e organizações da sociedade civil, de outro, é o ganho nas capacidades estatais, graças às quais as políticas sociais conseguem atender grupos sociais que estão espacial e culturalmente distantes das burocracias. É possível observar esses ganhos em políticas nas áreas de atenção básica à saúde, assistência, população negra, população indígena, mulheres, crianças e adolescentes, habitação e imigração, como indicam as pesquisas que compõem o livro “Movimentos Sociais e Institucionalização: Políticas Sociais, Raça e Gênero no Brasil Pós-Transição”. A obra condensa mais de uma década de reflexão e pesquisa coletiva, e propõe uma nova abordagem para estudar a relação entre atores sociais, movimentos sociais e Estado ou instituições políticas. 

A publicação foi lançada pela editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro EdUERJ, pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O livro foi organizado por Adrian Gurza Lavalle, pesquisador do CEM-Cepid/Fapesp e professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP); Euzeneia Carlos, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); Monika Dowbor, pós-doutora pelo CEM-Cepid/Fapesp e professora do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos); e José Szwako, que fez pós-doutorado no CEM-Cepid/Fapesp e professor do IESP-UERJ. A obra pode ser adquirida pelo site da EdUERJ

“O livro deriva de uma revisão crítica da literatura, a partir da qual desenvolvemos uma nova proposta para entender melhor como se dá a relação entre atores/movimentos sociais e Estado”, explica Gurza Lavalle. A inovação na forma de estudar essa relação é dupla e reside no foco dado ao estudo das interações entre Estado e movimentos sociais e na compreensão de que tais interações são mutuamente constitutivas das capacidades estatais e de ação dos movimentos sociais.

Tradicionalmente, os estudos tenderam a imaginar ou caracterizar o Estado como uma instituição relativamente monolítica e hermética às demandas dos atores sociais. Para esses estudos, a relação Estado - movimentos sociais poderiam levar a dois resultados: à desmobilização, pelo atendimento das demandas apresentadas pelos movimentos, ou à cooptação de seus membros com efeitos de neutralização. 

Nessa compreensão dicotômica, o Estado seria o polo ‘negativo’ da relação, incapaz de entender as demandas dos movimentos, e estes seriam o polo ‘virtuoso’, portadores de demandas genuínas. Os estudos basicamente focavam nas relações de confronto entre ambos. “Quando essa relação não seguia a lógica da política contenciosa, passava-se para a leitura de que o Estado estaria, então, cooptando os atores sociais. Estes, por sua vez, passariam por processos de desmobilização ou de burocratização”, acrescenta. 

No momento em que os movimentos sociais adentrassem o Estado, perderiam sua natureza e se tornariam parecidos com atores privados do mercado ou atores estatais. Dessa forma, a única saída possível para atores e movimentos sociais seria permanecer ‘fora’ do Estado e renunciar à tentação de ocupar posições na burocracia ou ser parte do poder burocrático político.

Olhando as conexões 
Gurza Lavalle explica que essas formas tradicionais de pensar não mostram a diversidade de relações entre atores sociais organizados e Estado. “Ou se observava o mundo de dentro dos movimentos sociais ou de dentro do Estado”, diz. Essas análises não mostram o processo de interpenetração entre atores sociais e as instituições políticas, conforme observaram os pesquisadores ao analisar diversos movimentos e sua relação com o Estado no período do pós-transição no Brasil, cujos marcos são o fim do período militar em 1985, a Constituição de 1988, a ascensão ao poder do PSDB e até a saída do PT com o impeachment em 2016.

“No período da pós-transição, diversas políticas públicas passaram a ser construídas em processos de interação entre Estado e atores sociais, como podemos observar em políticas públicas para meio ambiente, de combate ao HIV/aids, na constituição do Sistema Único de Saúde (SUS), na assistência social, na política voltada para a população negra, no financiamento da agricultura familiar”, exemplifica. “Essas políticas só são compreensíveis quando analisamos o processo intenso de interação entre atores sociais e Estado ao longo da produção da política”, acrescenta. 

Para estudar esses arranjos, os pesquisadores buscaram aportes na literatura neoinstitucionalista. Segundo essa linha, o Estado tem autonomia, ou seja, ele não opera apenas como um reflexo ou a serviço dos interesses econômicos, como a literatura marxista funcionalista diagnostica, nem é apenas um tomador de decisões resultantes da disputa dos grupos de poder, como explica a literatura pluralista. À linha de pensamento neoinstitucionalista foi avançada pela abordagem da polity approach. Para ela, a capacidade dos atores sociais de agir com sucesso depende da forma como conseguem se articular e se encaixar com o Estado.

Desenvolvendo uma abordagem que tanto corrige algumas limitações da abordagem neoinstitucionalista quanto amplia ideias que nela ficaram subdesenvolvidas, foi possível entender que a capacidade de atuação do Estado, ou capacidades estatais, e os repertórios e possibilidades de ação dos atores e movimentos sociais são construídos reciprocamente na interação entre ambos. A política para o tratamento e combate à aids no Brasil é um exemplo. “O Estado não tinha capacidade: era uma doença nova, não havia compreensão sobre ela, não havia uma burocracia dentro do Estado que lidasse especificamente com a epidemia. Tudo foi construído na relação entre ministério e secretarias de saúde, e o movimentos LGBT e as ONGs/aids. Nesse processo, o Estado ganhou capacidades administrativas e desenvolveu políticas que ganhara reconhecimento mundial”, lembra. 

Os atores sociais também ganham em capacidade de atuação. “Uma ONG pode demandar do Ministério da Saúde, por exemplo, a realização de campanhas para uso de preservativo, a oferta de tratamento pelo SUS, pode obter recursos do Ministério ou ser objeto do financiamento dos empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI), que foram muito importantes para a constituição das ONGs voltadas para a epidemia da aids no Brasil”, comenta. 

Os ganhos de capacidades estatais e de ação dos atores sociais ocorrem mediante a produção de encaixes, que são sedimentações institucionais de processos de interação sócio-estatais que adquirem autonomia e densidade próprias. Um exemplo está na política habitacional no estado de São Paulo e na sua dificuldade tornar acessível a habitação de interesses social a segmentos de renda baixa. Na relação entre Estado e movimentos de moradia, o primeiro incorporou a ideia de ‘mutirão’ trazida pelo segundo, se tornando uma das opções de política pública da área.

Ao fazer isso, o Estado desenvolve capacidade de atingir uma população fora de seu alcance e beneficia os atores sociais que ajudaram a construir esse instrumento e que, posteriormente, tornam-se intermediários do financiamento. Estes, por sua vez, passam a aplicar a seletividade própria das instituições, definindo quem será ou não beneficiário, influenciando na execução da política pública. Quando atores sociais são reconhecidos institucionalmente como portadores de demandas legítimas, e a eles é reconhecido o papel de representantes de determinados grupos sociais, e atribuído o exercício de funções públicas (como a construção de moradia de interesse social), estamos diante da configuração de um domínio de agência em um âmbito específico de atuação na política pública. 

O livro recém-lançado mapeia a construção de domínios de agência em diversas áreas, como políticas saúde, migração, urbanas, socioeducativas e políticas transversais estruturadas por raça, gênero e etnicidade. “Parte dos autores do livro foi bolsista de pós-doutorado do CEM, sem esse apoio estável a agendas de pesquisas não teríamos conseguido desenvolver a abordagem teórico que estamos propondo”, ressalta.

Desmonte e perda de capacidade estatal
Para Gurza Lavalle, a análise do período pós-transição mostra que o Brasil fechou um ciclo iniciado com o fim do período militar e a Constituição de 1988, passando pelo processo de expansão da política de dos direitos humanos e acabando com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Segundo ele, no atual governo de Jair Bolsonaro (PSL), observa-se uma tendência de desmonte, sem um diagnóstico fino sobre o que precisa ser mudado. 

Em sua análise, esse comportamento pode comprometer as capacidades de ação do Estado. “Se acabar com uma parte dos programas em parceria com organizações da sociedade civil para combate à aids, ou com os conselhos gestores de políticas, por exemplo, o desempenho das respectivas políticas pode ser comprometido”, diz. 

A questão agora é entender os limites para esse processo de desmonte ou desinstitucionalização. Retomando o exemplo dos conselhos, muitas instituições participativas foram criadas por decretos e portarias, e podem ser rapidamente extintas, mas outras foram criadas por lei e não podem ser eliminadas por decreto. Sua extinção precisaria passar por votação no Congresso Nacional, onde não há consenso. Mas mecanismos mais sutis de erosão dessas instituições estão sendo continuamente ativados pelo governo.

Esse desmonte também depende do poder de resistência das instituições e dos recursos de que os atores dispõem para se defender. Conforme mencionado, ainda que os atores consigam se manter, o governo pode ‘desidratá-las’, mudando suas composições e colocando à frente pessoas alinhadas à agenda atual. “Essa nova realidade trouxe outro desafio para nós, pesquisadores: pensar, do ponto de vista teórico e no longo prazo, processos de ‘desinstitucionalização’, de reversão”, comenta. 

Segundo ele, mesmo com essas mudanças, a questão da institucionalização permanece em pé como problema analítico, já que a abordagem proposta permite estudar quais interesses de hoje passarão a ser reconhecidos pelo atual governo e como esses atores estão construindo seus encaixes e domínios de agência. “São outros atores, que estavam fora do nosso radar. A literatura que estuda movimentos sociais tem viés seletivo conhecido, estuda certos atores e não estudou a direita. Analiticamente, nos aguarda o desafio de estudar esses atores e o momento atual; é isso que temos de fazer”, finaliza.


Sobre o CEM:
Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Universidade de São Paulo (USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.


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