Livro traça continuidades e divergências nas políticas de combate às desigualdades e de inclusão nos governos do PSDB e PT
Ao longo da Nova República, os governos do PSDB (1994 a 2002) e do PT (2003 a 2015) construíram um amplo e complexo conjunto de políticas e instituições objetivando implementar as políticas inclusivas previstas na Constituição de 1988, embora com fortes diferenças em termos de ênfase e intensidade. Em seu conjunto, as políticas produzidas desde a redemocratização redesenharam uma parte substancial das instituições e de nosso sistema de proteção social. Analisar em detalhes as trajetórias dessas transformações é o objetivo do livro “As políticas da Política: Desigualdades e Inclusão nos Governos PSDB e PT”. A publicação é um lançamento do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) pela Editora Unesp e conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O CEM é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fapesp (Cepid) e está sediado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). A mais recente publicação da instituição foi organizada por Marta Arretche (pesquisadora do CEM), Eduardo Marques, diretor do CEM (ambos professores titulares do Departamento de Ciência Política da USP), e Carlos Aurélio Pimenta de Faria (professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas).
O livro já está à venda pelo site da Editora Unesp e discute as políticas públicas (policies) e as dinâmicas políticas que as cercam (politics), produto simultaneamente das continuidades políticas vivenciadas pela democracia brasileira recente e das mudanças de orientação ligadas aos princípios e ideologias dos partidos no poder.
O livro explora ‘as políticas da política’ por observar as relações entre diferentes políticas sociais e dinâmica política, em particular as agendas destes dois partidos que exerceram autoridade política durável na Nova República. Aborda diversas políticas setoriais, partindo das configurações institucionais herdadas por cada partido que chegou ao governo, bem como as mudanças que introduziram. Os 16 artigos que compõem o livro tratam de questões como a agenda de proteção social, a efetividade das políticas de redistribuição de renda e políticas de saúde, educação, assistência social, urbanas, de infraestrutura, de desenvolvimento, racial, indígena e tributária e orçamentária, além da política externa, sempre em suas relações com a desigualdade social e econômica, e de forma empiricamente embasada, teoricamente orientada e com rigor científico.
Um dos destaques da publicação está na demonstração das tensas relações entre a expansão de políticas redistributivas orientadas para inclusão e combate à desigualdade e a permanência de um sistema tributário regressivo. O período pretendeu incorporar os outsiders, os excluídos do acesso a benefícios pelo modelo de cidadania regulada, mas mantendo intocados os padrões regressivos de arrecadação tributária, os quais, sabidamente, incidem mais fortemente sobre a renda dos mais pobres.
Enquanto o PSBD produziu uma legislação que aumentou regressividade, o PT não alterou tais padrões, “contrariando expectativas de boa parte da literatura comparada com relação às preferências da esquerda na área tributária”, destacam os autores. PSDB e PT adotaram “medidas como a concessão de isenções e deduções tributárias, que, aliadas ao sistema regressivo de tributação, não mexeram em um pilar importante da desigualdade de renda no país. Na mesma direção, decisões incrementais de vinculação orçamentária por parte de ambos os partidos, quando no poder, resultaram no enrijecimento do orçamento.”
No plano das políticas públicas, os autores demonstram a paulatina construção de um conjunto expressivo de políticas orientadas à redução das desigualdades. Em conjunto, ambos os partidos atuaram no sentido de implementar políticas inclusivas previstas na Constituição de 1988, mas divergiram nas estratégias adotadas para o combate à pobreza. Por consequência, foram se afastando programaticamente: o PSDB se deslocou para a centro-direita e o PT para a centro-esquerda.
Ao longo do período, caminhamos na direção da universalização do acesso à saúde, educação e proteção social. A estabilidade econômica propiciou queda da pobreza e o aparato de políticas de inclusão social contribuiu para a queda da desigualdade nos anos de crescimento econômico, além da formação de um colchão de proteção social na prolongada crise que se iniciou em 2014. O governo federal retornou à cena das políticas urbanas de forma expressiva, assim como às políticas de incentivo ao desenvolvimento e à produção de infraestrutura.
Por outro lado, a expansão sustentada das despesas públicas, a preservação de desigualdades inaceitáveis, e a retração de receitas e endividamento público são pontos de questionamento. No caso da pressão fiscal, os autores defendem que não se trata de “um subproduto direto da Constituição Federal de 1988. Antes resulta de decisões tomadas a propósito da sua implementação.” Já a partir de 2016, com o governo Temer, as políticas públicas com o objetivo de promover uma sociedade mais inclusiva passaram a ser fortemente questionadas, ou até mesmo refutadas.
O livro mostra ainda que a recente volta do crescimento da pobreza e da desigualdade ocorreu principalmente no mercado de trabalho, via desemprego e queda de renda, e trata da importância das políticas federais de transferência de renda, que compensaram essas perdas. “Entre 2016 e 2017, a renda média individual mensal obtida por todos os trabalhos do estrato dos 5% mais pobres caiu pela metade: de R$ 113,64 para R$ 68,71. Como os valores do Programa Bolsa Família e do salário mínimo foram corrigidos, a renda média individual mensal desse estrato em 2017 era de R$ 192,61 (via PBF) e de R$ 267,73 (via pagamentos previdenciários)”, segundo cálculos feitos com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD Contínua.
Prioridades diversas
O conjunto de estudos que compõem o livro “As políticas da política” revela que a Nova República compreendeu dois períodos de ‘autoridade política durável’, situação em que uma força política vence as eleições para a presidência e exerce o controle dos mais importantes cargos federais, mas além disso também é capaz de produzir as narrativas sobre si própria e impor sua agenda de governo.
O período de autoridade política durável na Presidência do PSDB teve uma agenda centrada no controle da inflação, estabilização da moeda, reformas de políticas herdadas do regime militar, e implementação de políticas de bem-estar preconizadas pela Constituição. Para esse partido, a inclusão social via Estado tinha menor centralidade do que a adoção de políticas orientadas a promover empregos. Tiveram destaque a montagem do Sistema Único de Saúde (SUS), a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e expansão do acesso ao ensino fundamental, a aprovação do Estatuto das Cidades, e a introdução dos programas de transferência de renda para combater a extrema pobreza.
Já o período petista foi marcado por uma inversão na ordem de prioridades. O PT trouxe para o centro da agenda o combate à pobreza e à desigualdade, e a expansão da provisão de bens e serviços, inclusive com a forte expansão e diversificação das políticas do período anterior, sobretudo para os mais pobres. A agenda da estabilidade econômica inicialmente tinha um lugar na agenda, mas foi gradativamente perdendo prioridade e “no governo Dilma Rousseff, essa orientação foi atropelada progressivamente por tentativas continuadas de estender artificialmente, via gasto público, o período de crescimento e bonança nas gestões Lula”, aponta o livro.
O PT prosseguiu na tarefa de aperfeiçoamento institucional e intensificou a construção de políticas de inclusão social e combate à desigualdade (com a concessão de aumentos reais expressivos do valor do salário mínimo). Mais concretamente, ampliou a taxa de formalização do mercado de trabalho, massificou o Programa Bolsa Família, expandiu e diversificou a cobertura em saúde para atendimento dentário e oferta de medicamentos, produziu programas para populações vulneráveis, aumentou o gasto federal na política educacional e a oferta pública de ensino superior e ampliou a indução de oferta do ensino infantil, médio e técnico, promoveu políticas urbanas e expandiu maciçamente a oferta de habitação – e o fez focado em população de baixa renda com emprego de subsídios públicos –, expandiu concentradamente a assistência social em serviços integrados e programas de garantia de renda, além de aumentar o protagonismo da política externa.
A par das diferenças de prioridade, “as duas presidências não se caracterizam por rupturas radicais”, mas por mudanças incrementais e articuladas que, em seu conjunto, mudaram a ação do Estado e o feitio de nossas políticas. O marco institucional anterior, limitações orçamentárias, vetos derivados da integração do Brasil à economia internacional, a necessidade de construção de coalizões de governo e a interação estratégica com demais partidos e articulações internas aos partidos operaram como freios e impediram as rupturas, o que demonstra duplamente que se grandes mudanças não decorrem automaticamente da ocupação do poder do Estado, mas elas tampouco demandam rupturas abruptas.
Sobre o CEM:
Criado em 2000, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) é um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Cepid-Fapesp) e reúne cientistas de várias instituições para realizar pesquisa avançada, difusão do conhecimento e transferência de tecnologia em Ciências Sociais, investigando temáticas relacionadas a desigualdades e à formulação de políticas públicas nas metrópoles contemporâneas. Sediado na Universidade de São Paulo (USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o CEM é constituído por um grupo multidisciplinar, que inclui pesquisadores demógrafos, cientistas políticos, sociólogos, geógrafos, economistas e antropólogos.
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